quinta-feira, 21 de maio de 2009

Um conto (quem nunca foi ghost writer?)

Sempre fui uma criança muito moleca, o que já naquela época era incomum por se tratar de uma menina. Na década de 50, todas eram comportadas, brincavam com bonecas de pano e com seus jogos de chá, estes muitas das vezes rebuscados, imitando as peças originais de porcelana encontradas nas mesas de café ou chá de nossas mães e avós. Mas eu não era assim. Ao contrário de todas, gostava de andar com os meninos e não via a hora de chegar da escola para jogar bola. Futebol, jogo de botão e amarelinha eram as minhas brincadeiras preferidas, para o desespero da minha família, super tradicionalista.
Lembro-me de que certa vez, já no final da década de 50, fiquei extremamente ansiosa para ir numa festa realizada pelos colegas do trabalho de uma amiga de nossa família. Estava próximo ao Natal e esta seria como se fosse um evento de confraternização, no qual essa tal amiga chamou a mim e a minha mãe para acompanhá-la. “Leve a menina, ela vai gostar. Vai estar cheio de meninos para ela brincar”, disse olhando seco pra gente. Diferentemente da minha mãe, que não reagiu à alfinetada à contra-gosto, eu adorei saber que além das meninas metidas e de fita de cetim no cabelo eu iria ter com quem brincar efetivamente.
Ainda bastante tímida, sem tirar os olhos do chão e com a mão grudada na saia da minha mãe, entrei no grande salão do Palácio das Laranjeiras, na época em que o Rio de Janeiro era a capital do Brasil. Tudo estava bem decorado e a mesa principal destoava pela fartura. Enquanto centenas de garçons atravessavam o salão levando delícias, as senhoras da alta classe carioca se sentavam à mesa com suas respectivas famílias. De pernas bem cruzadas e com a postura ereta, colocavam o guardanapo sobre o colo e mastigavam com delicadeza um pedaço de uma nobre carne vermelha, isso para que tão logo pudessem destilar seu veneno falando de outras tão mal vestidas quanto si próprias.
Quando o relógio anunciava apenas uma hora de festa, eu, ainda muito tímida sentada numa mesa ao lado da minha mãe, fui chamada pela cerimonialista a me juntar às outras crianças numa fila imensa. Não entendi nada a princípio, mas quando a tal moça disse que íamos receber um presente de Natal fui correndo para guardar o meu lugar. No início da fila, formada por uma gurizada de idades variadas, estava um homem alto, magro, com um rosto bem comprido, que sorriu para mim e me deu um presente envolto com uma linda fita vermelha.
Para minha surpresa, ao abrir o embrulho percebi se tratar de uma boneca. Nem era tão feia, mas me senti desconcertada ao ter aquele objeto nas mãos, sem saber o que fazer com ele. O devaneio era tamanho que mal notei quando alguém tocou em meu ombro. Era um menino que, sem perceber, me “salvara” de um constrangimento ainda maior, já que eu não sabia sequer brincar com aquele troço. Com uma bola de futebol em riste me chamou para jogar com os outros. Imediatamente, soltei a tal boneca, sem perceber que lá ia ela caindo ao chão, onde, acredito, permaneceu até sempre.
Anos mais tarde, sentada na sala ao lado da minha mãe e do meu noivo, via estupefata pela televisão o nascimento daquela que seria a capital do País, Brasília. Nunca pensei que um dia poderia ver a construção de uma cidade, ainda mais de uma capital federal, então não me contive e comecei a elogiar seu grande fundador, Juscelino Kubitschek. Foi quando minha mãe, se gabando para o meu noivo, lembrou da tal festa de Natal, em Laranjeiras, na qual fomos convidadas. “Lá minha filha recebeu das mãos do próprio JK uma linda boneca, que ela guarda com muito carinho até hoje”.
Enquanto meu noivo se enchia de orgulho e minha mãe cantava vitória por ter conquistado seu objetivo, fiquei em silêncio. Na verdade, porque não sabia ao certo se havia ficado mais chocada com a mentira proferida por minha querida mãe ou com o fato de que, na época, não tinha a menor noção de quem era aquele homem alto, magro, que sorriu para mim. O mesmo sorriso, mais envelhecido é claro, que via através da televisão, a medida em que falava sobre Brasília.

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